Em 1908, um positivista no Rio de Janeiro recebeu uma flor. Artesanal, o pequeno presente fora feito de feltro e tinha as cores da Bandeira Nacional: caule e folhas verdes, pétalas amarelas presas ao centro azul, como a esfera celeste. Delicadas linhas brancas em cruz insinuam as estrelas e um pequeno anel branco remete à faixa que, na bandeira oficial, contém o lema ordem e progresso.
A autora, Bernardina Botelho de Magalhães (1873-1928), era uma das cinco filhas de Benjamin Constant Botelho de Magalhães e Maria Joaquina Botelho de Magalhães. Muito atenta ao que se passava ao seu redor, desde menina cultivava diários através dos quais podemos revisitar seu cotidiano, as aulas de costura e bordado e os dias que precederam a proclamação da República. Em 1908, confeccionou a flor verde, amarela, azul e branca. Como consta da documentação, a flor foi doada ao museu por Henrique Miranda, filho de Manoel.
Manoel Tavares da Costa Miranda nasceu em Canguaretama, Rio Grande do Norte, também em 1873. Positivista, militar e muito próximo da família de Benjamin Constant, fez carreira no serviço público, defendeu a república contra os movimentos de restauração da monarquia e atuou significativamente na construção do culto aos símbolos nacionais, sendo considerado o criador do Dia da Bandeira, à época chamado de Festa da Bandeira. Estava aí a razão para ter recebido o presente: Bernardina via no ato de Manoel uma luta que fora de seu pai, Benjamin Constant, postumamente incluído no conjunto de heróis brasileiros como o Fundador da República.
Bernardina já tinha uma história particular com a Bandeira Nacional, pois participara da confecção do novo símbolo pouco tempo depois da proclamação da República. Logo após o 15 de novembro de 1889, os gabinetes do Governo Provisório se ocupavam discutindo o desenho da flâmula; no âmbito privado, as meninas de Benjamin tomavam lições de bordado. Certo dia, registrou Bernardina em seu diário que saíra com sua mãe, a irmã e a professora de costura “para tratar os preparos da bandeira e mandar fazer o risco do bordado”.
O pavilhão nacional nasceu em meio a polêmicas e ataques públicos aos seus idealizadores, os positivistas. Tantas foram as críticas e mesmo piadas que circulavam na imprensa e no boca a boca carioca, que Raymundo Teixeira Mendes, mentor ideológico do novo desenho da bandeira, se viu obrigado a publicar um artigo para se defender. Baseado nas ideias de Augusto Comte, criador do positivismo, buscava de uma vez por todas consolidar publicamente a bandeira da pátria.
Dezenove anos depois, em 1908, quando começaram as festividades em homenagem à bandeira no Rio de Janeiro, os símbolos ainda estavam por firmar-se. Ao que parece, a Festa da Bandeira não surgiu para comemorar um símbolo amado, mas sim para ensinar a amá-lo. Em seu esforço, os positivistas de então chegaram a formar uma Comissão Glorificadora do Natalício da Bandeira da República e a imprensa registrou a participação popular nos festejos. Foi esse o contexto no qual Bernardina transformou o símbolo oficial numa flor.
A flor é um dos mais ricos símbolos das culturas humanas, tão rico que dificilmente pensamos nela como a estrutura reprodutora das plantas. É muito mais um símbolo de afeto, de estética, de perfume, às vezes de efemeridade, de nascimento e também de morte. Relaciona-se sempre com algo externo e bem maior que ela própria, muitas vezes com coisas tão abstratas – mas nem por isso menos reais – quanto o amor. Flores fazem parte do cotidiano e, portanto, são capazes de mediar culturalmente experiências, integrando uma vasta iconografia.
É bastante significativo que a filha do Fundador da República tenha escolhido uma flor para celebrar a bandeira, sobretudo porque, no século XIX e início do XX, era comum que as mulheres se dedicassem ao conhecimento da simbologia das flores. Se for possível relacionar objeto com uma flor de verdade, duas possibilidades se apresentam. A primeira delas é a centaurea, pelo formato das pétalas repicadas. Nos dicionários dos significados das flores do século XIX, a centaurea simboliza a felicidade suprema. Originária da Turquia, ela também pode simbolizar o céu, o que é, no mínimo, sugestivo, já que a bandeira do Brasil, na sua versão republicana, representaria o céu do Rio de Janeiro no dia 15 de novembro de 1889.
A segunda possibilidade é a rosa, menos pelo formato e mais pelo significado, já que a rosa vermelha é o símbolo do positivismo. Ela talvez seja a melhor representante do amor. Três rosas (uma em botão, uma semiaberta e a última plenamente aberta) significam a mãe, a esposa e a filha; ou o passado, o futuro e o presente. São, enfim, os laços afetivos da família e a concepção filosófica do tempo. Vale registrar que o pensamento positivista é quase sempre formado por tripés: por exemplo, as famílias, como unidades, formam a pátria, e as pátrias formam a humanidade. Por sua vez, o caminhar da humanidade é marcado pelos três tempos filosóficos: experiências passadas, um presente transitório rumo a um futuro positivo. A figura estruturante da família é a mulher, assim como são mulheres as figuras da pátria e da humanidade. E assim retorna-se à flor, símbolo do feminino e do amor.
Com toda a delicadeza de um pequeno objeto museológico de feltro, a flor republicana reveste-se de elementos simbólicos que eram muito importantes para os positivistas como Manoel Miranda e todos os outros que, como ele, investiram num civismo patriótico de veneração e profundo respeito pelos emblemas nacionais. O culto positivista evoca um momento no qual todos os cidadãos dirigiriam seus olhares para o símbolo e, então, formariam uma pátria. O amor à bandeira produz o amor cívico, pois todos estariam reunidos em torno do mesmo sentimento.
Assim, o evento de 1908 – celebrado no âmbito íntimo das afeições pessoais entre Bernardina e Manoel – tinha o objetivo público de uniformizar o culto à bandeira, instituindo um horário para que o símbolo fosse hasteado em vários locais da cidade com participação de alunos, professores, militares e população das ruas cariocas. As escolas receberam circular do diretor da Instrução Pública, Leôncio Correia, com orientações sobre como proceder com as homenagens. As professoras que aderiram aos festejos leram sonetos em saudação à bandeira e mobilizaram os alunos, que entoaram os hinos nacional e à bandeira.
Nessa altura, o Diário Oficial registra ordens para que navios e fortalezas dessem salvas de tiros e para que vários setores das Forças Armadas cultuassem a bandeira ao meio-dia. Sessões solenes no Senado e na câmara do comércio também cultuaram o símbolo. O tom das matérias valoriza a adesão popular aos eventos. O Correio da Manhã relata, em 20 de novembro de 1908, que “não só nos estabelecimentos oficiais foi prestada homenagem ao símbolo da Pátria. Também os particulares arvoraram a bandeira, rendendo-lhe culto de amor cívico. O Povo associou-se de coração ao júbilo do dia e, em muitas ruas, à noite, vimos fachadas brilhantemente iluminadas”.
De acordo com a imprensa, tudo seguia como desejavam os líderes do movimento, cujo apelo foi assim descrito. N nas páginas de O Paiz, do dia 14 de novembro de 1908, anotava-se: “sabemos que a comissão que tomou a seu cargo a realização dessa festa cívica, não fará convites especiais, mas dirigirá um apelo público a todos os cidadãos para que individualmente ou grupados nas sociedades, institutos e estabelecimentos, que dirigem ou de que fazem parte, se associem à patriótica comemoração, fazendo em suas sedes, ao meio-dia em ponto, o levantamento da bandeira nacional, segundo o programa que adotarem no sentido de dar ao ato a maior solenidade em meio do mais vivo entusiasmo cívico”.
As fotografias mostrando a movimentação na cidade do dia 19 de novembro de 1908 apareceram na revista O Malho datada do dia seguinte. Vemos ajuntamentos de pessoas em alguns dos lugares mais importantes da Capital Federal, o que sublinha o apelo popular que os idealizadores das festas almejavam. Era preciso formar um povo patriota e cívico, ordeiro e reverente. A Avenida Central, as obras do Porto, o Palácio do Catete e a Prefeitura foram os locais selecionados pela revista para retratar os vivas à bandeira e à República.
As imagens e os relatos do culto cívico nesta e em outras publicações estabelecem os papéis sociais dos participantes. A elite intelectual e a classe política lideram os acontecimentos. A força policial desfilava nas ruas sua reverência, sua marcha ordeira e, é claro, suas armas, mas também limitava o campo de ação dos participantes. O povo aparece como gente devotada, que segue o pavilhão, na maioria homens com seus chapéus ou alunos e alunas das escolas. Fica a impressão de que a bandeira do Brasil seria o norte da bússola nacional, que deveria ser seguido com abnegação patriótica.
Teria Bernardina pensado nisso? Indicaria o presente dado a Manoel a abnegação passiva e a humildade que, de acordo com os dicionários de símbolos, são dois dos atributos das flores? Traduziria esse objeto o pacifismo e o altruísmo caros aos positivistas? Não pregava o próprio positivismo o “viver para outrem”, “o amor por princípio” e um “viver às claras”? O que teria acontecido com esse projeto pátrio dos positivistas?
Há duas referências a flores que podemos relacionar com o momento político vivido pelo Rio de Janeiro e pelos positivistas, a partir do diário de Bernardina. No poema Pensamentos de uma flor, de Clotilde de Vaux, musa inspiradora de Augusto Comte, a flor diz: “tenho o primeiro olhar do rei da natureza”. O rei da natureza é o sol. Em homenagem a Benjamin Constant feita em 17 de novembro de 1889, os alunos da Escola Militar fazem referência ao “sol da Liberdade” e, em seguida, afirmam: “Flores, só flores juncam o solo puro por onde, vitorioso, haveis passado, conquistador sem rival, conduzindo um povo desgraçado à terra da promissão”.
Essas vozes do século XIX ecoaram em 1908, numa veneração póstuma aos autores do decreto que instituiu o pavilhão republicano. Feita pela Comissão Glorificadora do Natalício da Bandeira da República, lembrava as ações patrióticas nos idos de 1889 e os heróis Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant, Aristides Lobo, Eduardo Wandenkolk, Rui Barbosa, Quintino Bocaiúva e Campos Salles.
Se esses líderes que deveriam guiar o país para uma terra prometida não eram unanimidade em 1889, podemos sugerir que também não o era a devoção aos símbolos nacionais que eles esperavam, em 1908. No dia 20 de novembro deste ano, lemos na folha O Suburbio: “pena é que em todas as escolas municipais não se prestasse essa reverência como determinou o dedicado e ilustre diretor de instrução. Sabemos que algumas escolas em diferentes zonas que, além de não terem mastros nem bandeiras, as professoras não ligaram importância às ordens emanadas pela diretoria de instrução, o que assinalamos aqui para que tal abuso não continue em outras comemorações”.
Talvez seja ainda mais interessante a reação deixada em manuscrito na edição sobre a Festa da Bandeira publicada no número de 28 de novembro de 1908 da Revista da Semana: “quanto [sic] vagabundos”, registrou em protesto um leitor que, hoje, não podemos mais identificar, bem abaixo da fotografia que mostra os cariocas reunidos na Avenida Central, dando vivas à bandeira. Para esse leitor anônimo o lugar dos desocupados amantes de símbolos, ao meio-dia, deveria ser a fábrica, a loja, talvez o cais do porto, não as ruas.
Nessas visões da participação popular na vida pública estão em jogo o que significaria ser um cidadão da República. Interromper a andamento do dia para que todos olhassem juntos a bandeira, em culto cívico? Ou manter o ritmo cotidiano urbano no qual o trabalhador continua a produzir? De um lado ou de outro, as regras do jogo vêm da elite iluminada e dirigente, classe economicamente dominante que guia um povo abnegado e pacífico.
Há pouco tempo vimos a Bandeira Nacional instrumentalizada de várias formas, servindo de suporte e baluarte das manifestações populares, democráticas e antidemocráticas. Que interesses poderiam estar representados nela, no Brasil do século XXI? Teremos ido longe demais, partindo só de uma pequena flor?
Autoria: Marcos Felipe de Brum Lopes
*Uma versão desse texto foi originalmente publicada sob o título “Flor Positivista” no livro História do Rio de Janeiro em 45 objetos, organizado por Paulo Knauss, Isabel Lenz e Marize Malta e publicado pela editora FGV, em 2019.